Algumas notas curiosas e eruditas sobre Raimundo Lúlio e a harmonia platônico-aristotélica

Carlos Alberto
4 min readMay 28, 2022

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“Se alguém, passeando pela sua biblioteca, não se sente atraído pelas obras de Sto. Tomás e do Beato Lúlio: Deus não te ama!” — D. Salvador Bové.

Quando conheci Raimundo Lúlio através de trechos de sua “Ars Magna”, imediatamente pensei que ele era um daqueles personagens estranhos e prodigiosos da época medieval, tão fascinantes quanto esquecidos. Alguém que, num primeiro olhar, incorporou antecipadamente os ideais do “homo universalis”, tão populares no Barroco: de um pensamento enciclopédico, mais geométrico, dispersado em uma infinidade de assuntos para alcançar a verdade de todos os aspectos possíveis. Prontamente o rotulei como excêntrico, outro que, embora tivesse algumas coisas úteis, não tinha nada de substancial a oferecer para o meu tomismo.

Instigado por Caramuel, um homem que, como dizia seu pior inimigo (o autor de Anti-Caramuel), “tinha inteligência como oito, eloquência como cinco e juízo como dois”, acabei revisando algumas propostas de conciliação entre a Academia e o Peripato; entre elas, a do próprio Caramuel, que, mesmo que suponha uma reconciliação mais de sua própria mente do que de acordo com Platão e Aristóteles, inegavelmente contribui para essa questão.

Outra proposta que reexaminei foi a de Pico della Mirandola, figura que encarna perfeitamente o espírito do Renascimento, e que, neste contexto, apresenta uma engenhosa proposta de harmonia entre neoplatônicos e aristotélicos (contra o rígido neoplatonismo de um Médicis e um Ficino) sobre a controvérsia da conversão do ente com o uno (que também afeta o problema do constitutivo formal da Divindade). A solução mirandulana é frutífera, mas ainda insuficiente: resolve, no máximo, o ponto de uma profunda disputa metafísica, porém quanto às divergências lógicas, cosmológicas e até gnosiológicas, é completamente silenciosa.

E as propostas de João Marci e Fox Morcillo? A primeira sustenta que as formas primárias e secundárias dos peripatéticos são as ideias platônicas incorruptíveis e operativas cujos efeitos são, por exemplo (como todas as coisas geráveis), animais e outras coisas que são produzidas sem o princípio de que são geradas. Solução que não resolve muito. A conciliação foxiana em “De Platonis et Aristotelis consensione”, em contrapartida, se reduz a oferecer um texto onde o Estagirita diz a mesma coisa que Platão sobre a existência de uma Forma primeira, divina e universal (criadora de todas as outras formas chamadas particulares), ao qual cada uma se refere como seu próprio fim e que, além disso, existe à parte dos seres concretos.

No entanto, considerando que Aristóteles concede a Platão a Forma primeira, divina e universal, como tal forma reuniria em si os mesmos caracteres ou notas que o Peripato atribui às chamadas formas particulares que afetam as coisas? Como explicar as consequências que derivam disso? Morcillo é completamente silente. Sua concórdia, como a de Marci, é apenas um passo (legítimo, mas ainda incompleto) em direção ao problema cosmológico. As outras camadas de dissonância entre a Academia e o Liceu permanecem intocadas.

É na escolástica colonial que brilham os passos de uma harmonia integral entre ambas as tradições: do ventre de uma índia emerge no Novo Mundo Espinosa Medrano, figura de erudição ímpar que retoma outra vez a rixa entre platônicos e aristotélicos. Desta vez, os representantes do Peripato não são seus comentaristas gregos, árabes ou judeus, mas principalmente as escolas de Sto. Tomás e Escoto.

Sua solução, embora simples, é profunda (além de lançar luz em nível lógico e cosmológico): tudo o que é necessário para constituir a ideia platônica é encontrado na essência possível e eterna da coisa ensinada pelos aristotélicos. Assim, o “esse essentialis” inaugurado por Henrique de Gante, assimilado pelos escotistas e pelos tomistas, é a chave mestra para diluir o dilema das duas escolas. Do lado lógico e intencional do problema, surge o espaço para a ideia platônica ser o fundamento quase remoto do universal de segunda intenção.

A tentativa de Medrano é fundamentalmente correta em seu curso, mas, como as outras, continua incompleta. Ainda é indispensável elucidar a harmonização da lógica de Platão com a de Aristóteles, sendo a primeira real e intencional ao mesmo tempo, e a segunda apenas intencional (em princípio): terá a causa material da ordem lógica, indicada por Platão, a mesma origem e, portanto, o mesmo valor científico, que a causa material da ordem lógica indicada por Aristóteles? No horizonte gnosiológico, como compreender a visão das formas com a descoberta do intelecto agente? No horizonte cosmológico, como cruzar o “esse essentialis”, por um lado, com a tríade platônica Deus, ideia, matéria e, por outro, com a tríade aristotélica, matéria, forma e privação? Como interpretar o princípio henológico? São questões que o acordo medraniano não responde diretamente.

Que faremos agora? Há algum filósofo que tenha produzido tal concórdia em tantos níveis diferentes (lógico, cosmológico, gnosiológico, metafísico)? Não temos mais tentativas do que as mencionadas?

O que respondo com os lullianos do século XIX: “sim, meus irmãos; veja, é o Beato Raimundo Lúlio”. Um doutor que apresenta uma solução satisfatória para quantos pontos reclama a mais exigente conciliação da Academia com o Liceu, que longe de contrariar Sto. Tomáse seus melhores discípulos, é uma extensão e refinamento do próprio tomismo.

O conselho de Alberto Magno não poderia convir em hora melhor:

“Saiba, filósofo novato, que você não será perfeito em filosofia a menos que admita os sistemas de Aristóteles e Platão ao mesmo tempo”.

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