Carlos Ramalhete e Duns Escoto: notas sobre o problema da transcendência

Carlos Alberto
9 min readFeb 26, 2021

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“Naquele gênero de disputar das coisas sagradas, que chamam escolástico, não há coisa nem mais aguda, nem mais cabal, nem mais consumada que Escoto.” — Gerardo Mercator (em Adlant, tab. I, De Scotia).

Recentemente tomei ciência de um artigo do sr. Carlos Ramalhete que busca, entre outras coisas, indicar uma das principais causas da negação do transcendente: nota característica, por certo, de várias filosofias modernas. Entre as causas principais diagnosticadas, pontualiza Ramalhete, estão Escoto e sua univocidade do “ser” (lembremos que para Escoto o “esse” é uma noção plexa com a de essência; o mais correto, portanto, seria falar de uma univocidade do “ente”).

Antes de manifestar minhas discrepâncias com o referido artigo, faço questão de sinalizar que concordo com o certeiro diagnóstico deste tomista sobre outra questão: o pecado do lefebvrismo e seus sequazes (não só dos diretamente lefebvristas, mas também dos que comungam próxima ou remotamente do filo-lefebvrismo), i. e., a desesperança na divina providência e na eficácia intrínseca ou extrínseca da graça. Justo exame que eu, particularmente, subscrevo com os escolásticos que sempre colocaram, em maior ou menor medida, os argumentos “ex salutem Ecclesiæ[1] na segurança da divina providência e também na promessa de Cristo a São Pedro: “[…] sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18).

Voltando agora à questão anterior: concedendo ainda alguns dos efeitos apontados pelo sr. Ramalhete, especialmente em relação aos diversos ateísmos e antiteísmos modernos, discrepo gravemente em relação à apuração das causas: não creio que Escoto e sua concepção univocista do ente sejam, nem de longe, os responsáveis por graves detrimentos à fé como a negação do transcendente. Na direção contrária, na verdade, é que a chamada religião seráfica buscou sempre garantir a verdadeira transcendência não só no campo das ciências (como da metafísica e da teologia sagrada), mas também do Deus verdadeiro. É manifesto, assim, que entre o que digo e o que afirma Ramalhete há grande diferença; por isso examinarei à luz de Escoto e de sua escola as afirmações que considero capitais em seu artigo.

Para facilitar, como sempre, reproduzirei os pontos que considero capitais e em seguida os comentarei detidamente:

(1) Carlos Ramalhete: “Rompendo com uma tradição correta transmitida desde Aristóteles e que forma a base da percepção cristã da realidade, Escoto pregava que não há diferença entre o Ser de Deus e o ser de Suas criaturas, tendo assim exatamente o mesmo sentido (unívoco) ambos os modos de ser, que para ele seriam um só.”

Em primeiro lugar, nada mais distante da verdade que dizer que para Escoto não há diferença entre o ser de Deus e o ser criatural: uma vez que o ente é unívoco apenas enquanto predicado quiditativamente de todos os inteligíveis, as diferenças últimas (ou paixões complexas) e os transcendentais do ente, exceções denotadas pelo mesmo Escoto, permanecem formal-atualmente excluídas de tal univocidade. Considerando, ademais, que para o franciscano o ente real se contrai por modos intrínsecos e não por diferenças extrínsecas [2], por tais modos, distintos com distinção formal “ex natura rei” do ente comum, é que o escotismo resguarda a invencível transcendência entre o radicalmente infinito e o finito.

Daí que tampouco é correto dizer, como disse o sr. Ramalhete, que para Escoto ambos os modos de ser são um só: não podem ser um só, uma vez que as determinações comuns a Deus e às criaturas, precisamente por serem comuns a ambos, não podem ser identificadas com a finitude e o infinito, ou seja, com os modos intrínsecos do ente. Se entre os dois modos intrínsecos fundamentais do ente (que concorrem como atributos desta noção) e o mesmo “ens commune” há distinção formal, não pode ser o caso de uma predicação unívoca das diferenças.

Para os escotistas, neste sentido, o ente não é predicado univocamente das coisas diversas na medida em que são diversas, visto que são diversas justamente pelas diferenças; em razão disso, a irredutibilidade entre os modos intrínsecos e o próprio ente “sub rationem entis” [3] é que assegura, como é óbvio, toda transcendência de Deus sobre o mundo.

Mas ainda resta uma peça do quebra-cabeça que provavelmente escapou ao sr. Ramalhete: se as paixões simples e diferenças últimas são predicadas não in quid (as noções que fazem parte de sua essência) e univocamente, mas in quale ao ente, é preciso sinalizar o modo de contração deste “conceito” categoremático enquanto as paixões complexas contemplam virtualmente a razão de indeterminada de ente.

Acerca disso, pasmem os intelectos: Escoto defendeu certa analogia do ente… Silêncio ensurdecedor.

Ironias a parte, Escoto patrocinou, de fato, uma analogia do ente (embora não uma analogia fundante, como a de Suárez e Caetano) quando concebeu porções mínimas do ente [4] que não são formalmente idênticas à porção comum indeterminada desta noção. Podemos, como consequência, dizer que Escoto e seus discípulos observam uma analogia do ente para tudo o que não é predicado quiditativamente de sua razão ou comunidade unívoca, como o modo intrínseco da infinitude e da finitude que convém a Deus e diversamente às criaturas enquanto criaturas.

Esta conveniência, tão reiterada pelo nosso doutor, o aproxima certamente de algo como a analogia de atribuição intrínseca, enquanto as criaturas são comparadas a Deus como “mensurata ad mensuram” (Q. In Sententiarum, Lib. I, Dist. VIII, q. III, §11) ou na medida em que todos os entes têm uma referência ao ente primeiro (De Anima, q. XXI, resol. V, §14), que é Deus. No quadro das espécies de analogia, poderíamos considerá-la também no que Caetano autodenominava de “analogia de desigualdade” (De nom. Analogia, cap. I, §4), que é caracterizada por possuir uma razão significativa unívoca desigualmente participada por cada coisa cujo nome é predicado (v. g., o gênero animal como predicado desigualmente para o homem e para a ostra, que é um molusco); o que coincide, de certa forma, com a univocidade com graus de analogia de Bartolomeu Mastrio. [5]

Estamos diante de um Escoto “analogista”, defensor sutil do que Gaetano Felice [6] apelidava de tríplice univocidade do ente (entre os quais não está, como ironizava o pe. Descoqs, uma univocidade estéril), mas que também concorre com alguma analogia: um Escoto que o sr. Ramalhete parece, no fim, desconhecer em seu artigo.

(2) Carlos Ramalhete: “São Tomás, com Aristóteles, ensina que apenas Deus efetivamente é; Ele é o Ser-em-Si. O nosso ser só pode ser comparado por analogia ao Ser de Deus, por este ser a origem daquele. Nós “somos” (ou melhor, já que em português é possível traçar esta distinção, “estamos”) por participação no Ser de Deus, como uma coisa aquecida participa do fogo sem ser fogo.”

Para Escoto, como dissemos, o ser das criaturas também é comparado por analogia “excessa ad excedens” com o ser divino; o que é possível justamente pela analogia de causalidade: através da criação as criaturas infinitamente inferiores ao Criador participam de algo das perfeições existentes em Deus.

Pois bem: outro fato impressionante (desconhecido pela maioria dos autores) é que a metafísica escotista não desconheceu a doutrina da participação. Vemos a divisão do ente em “ens per essentiam et ens per participationem” sendo comentada explicitamente por Escoto (Quodlibet, q. XIII), Felipe Fabro (In Aristotelis Metaphysicorum, Disp. VI, Lib. VIII), João Ponce (Com. Theologici in Sententiarum Scoti, Lib. I, Dist. II, q. III), Pedro de Áquila (Sententiarum, Lib. I, Dist. XVII, q. I), Theodore Smising (Disp. Theologicarum, Tract. I, Disp. II, q. I) e tantos outros deste liceu.

Poderíamos comentar com serenidade sobre uma metafísica da participação escotista; metafísica jamais esquecida por esta escola.

(3) Carlos Ramalhete:Para toda a tradição cristã, há uma diferença absoluta entre o Criador e Suas criaturas, mas, num acontecimento tão importante que contamos o tempo a partir dele, o próprio Criador fez-Se criatura, morrendo na Cruz por nós.”

Apreciamos o destaque na encarnação do Verbo na conclusão de Ramalhete, porém reputamos como imprecisa a antecedente: não é apropriado dizer que para tradição cristã há uma absoluta diferença entre o criador e suas criaturas. Considerando a conclusão às últimas consequências certamente cairemos em posições equivocistas como a de Maimônides, Gante ou Aureolo.

Não esqueçamos que no pensamento de Santo Tomás a analogia não se encontra absorvida na equivocidade ou na univocidade precisamente porque compreende uma “ratio diversa” e “secundum quid” a mesma; daí que seja como um modo de atribuição lógica intermédia que não é uma nem tampouco a outra (o que Caetano já destacava em “De Ente et Essentia Commentaria”, Cap. II, q. III §21, salientando a propriedade média idêntica segundo-um-quê e diversa segundo-um-quê da analogia).

Para além de qualquer chatice ou rigorismo meu: é necessário discernir a adequada semelhança (não identidade!) entre Deus e as criaturas para neutralizar todo equivocismo.

(4) Carlos Ramalhete: “Outro problema gravíssimo que advém da assunção errônea da univocidade do ser é a incapacidade liminar de compreensão da realidade criada como hierárquica. Ao trazer a divindade para o mesmo campo, para o mesmo modo de ser das criaturas, a diferença entre Criador e criaturas, como vimos no caso da “espiritualização” da oralidade e da emoção nos protestantismos, passa a ter que ser traçada arbitrariamente em algum lugar.”

Para os que acompanharam até aqui o andar da carruagem, é manifesto que o univocismo de Escoto não encerra incapacidade alguma na compreensão da realidade como hierárquica; basta, outra vez, citarmos a Mastrio que concebia a hierarquia universal pelas diferentes gradações físicas na “ratio communis” da univocidade.

Como afirmações semelhantes já foram respondidas implícita ou explicitamente nos comentários anteriores, aproveito o ensejo para realçar que Escoto acreditou estar seguindo a Aristóteles ao discernir formalmente a razão de ente de seus atributos próprios e disjuntos: não estamos diante de um autor que quer ter o filósofo grego como inimigo, diferente do que parece sugerir o texto. [7]

É propício acentuar que apesar de perder de vista o alvo fundamental de sua crítica, o sr. Ramalhete acerta em outros pontos que, em geral, independem das inquirições sobre a suposta “causa” da negação do transcendente. Os erros examinados, que incorre Ramalhete, são frutos de uma má compreensão daquele que Júlio Escaligier (Exercitat. 327) dizia ser a pedra de amolar das inteligências e tão só!

Assim como houve um Caetano, um Bañez, um Ferrariense para os tomistas, houve também um Mastrio, um Andreas, um Trombetta para escotistas. A religião seráfica, que tem a Escoto como doutor, produziu tão grandes nomes como a chamada “milícia angélica”; por isso, para anuir ou discordar: façamos justiça a tão estimado doutor.

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Notas:

[1] Os argumentos “ex salutem” são aqueles extraídos do fim sobrenatural da Igreja em ordem à santificação das almas para beatitude eterna; dele sacam os escolásticos conclusões acerca da indefectibilidade tanto magisterial como disciplinar da Igreja, assegurada pela divina providência e pela graça. Para amostras desta família de argumentos veja-se João de Salas (jesuíta espanhol do século XVII) em “Tractatus de legibus in primam secundae S. Thomae”, Tract. XIV, Disp. VII, q. XCV, sect. XX.

[2] Para Escoto o ente não é um gênero sob o qual estão compreendidos como espécies as criaturas e Deus: o conceito de ente não compreende a univocidade dos gêneros que se contraem por diferenças extrínsecas ao mesmo (v. g., o corpo em relação ao ser animado e inanimado). Um modo intrínseco é uma modalidade da essência que, sem afetá-la absolutamente, altera seu grau de realização; o que é distinto, por sua vez, do que acontece na contração de animal para as diferenças extrínsecas que envolve, como animado e inanimado que variam sua razão formal pelo que em lógica predicativa denominamos como diferença específica (predicada em quale quid).

[3] A univocidade da noção de ente corresponde a uma pluralidade de modos e realizações no plano da realidade. Ante a pergunta “de que maneira duas ou mais entidades diferem uma da outra?”, podemos responder de duas maneiras: “realmente” ou “objetivamente”, mas Escoto não se contenta com as duas alternativas, pois o intelecto, segundo ele, capta outras diferenças que se encontram numa espécie de âmbito [relativamente] intermediário entre a distinção real e a de razão: o âmbito das formalidades (sobre isso, v. g., “Lectura in Formalitates” de João Vallone).

[4] É importante, entretanto, não confundir a noção de “formalidade” com a de forma. De fato, do ponto de vista de Escoto uma forma (v. g., uma qualidade) é realmente distinta do sujeito em que é encontrada, enquanto uma formalidade é idêntica com aquele. Em suma, uma formalidade é certa “porção de ser”, inseparável da entidade ou essência em que se encontra. Isto envolve, entre muitas coisas, a polêmica do “ens diminutum” que aqui não abordaremos.

[5] Divergem os escotistas sobre a natureza da univocidade: entre os defensores de uma noção unívoca e genérica do ente estão Semery (Log. d. IV, q. IV) e Arriaga (Log. d. II, s. IX); Bartolomeu Mastrio (Philosophiae ad mentem Scoti, tom. IV, Disp. II, q. V, art. I) patrocina uma noção de ente unívoca, porém com graus de analogia, de sorte que a univocidade pura só se realiza entre a espécie e seus indivíduos. Para Mastrio no gênero há certo grau de analogia, porque, o conceito de animal embora unívoco na espécie racional e na irracional, não se acha em igual grau entre indivíduos da mesma espécie, entre racional e racional, irracional e irracional, etc. Outros ainda, conforme relata Amor Ruibal, limitam a doutrina do ente unívoco apenas aos seres contingentes e para substância e o acidente.

[6] Cf. Philosophia universa speculativa peripatetica (vol. IV), Disp. XXIV, sec. VIII.

[7] Escoto ancora-se especialmente no livro IV da Metafísica para sua doutrina dos transcendentais (Ordinatio, II, XVI, q. única, §17).

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