Novo Scotellus: uma defesa do voluntarismo?

Carlos Alberto
8 min readOct 22, 2023

--

“Escoto contradiz o Doutor Angélico: confesso, mas a mesma contradição esclarece os pontos de vista do divino Tomás. É por isso que os discípulos mais severos do preceptor angélico, a Escoto, a quem não podem entender como um guia, o percebem como certa luz, pois ele expõe as opiniões contrárias à sua doutrina com tanta fidelidade e clareza, e as apresenta com raciocínio tão eficaz, que mesmo Caetano o admite como luz.” Caramuel Lobkowitz (em Leptotatos, Latine subtilissimus).

Uma tripla comparação pode ser feita entre a vontade e o intelecto, segundo o que (assumindo substantivamente e radicalmente) o homem se constitui em sua espécie e se destaca sobre toda natureza do mundo sensível: a primeira em relação à ordem, a segunda em relação à capacidade, a terceira em relação à perfeição e dignidade. Quando comparamos em relação à ordem, a potência intelectiva naturalmente reivindica a prioridade, porque a perfeição de uma coisa em si é anterior à ordem para outra: porque o conhecimento, ao contrário do amor, implica sempre a perfeição do próprio sujeito cognoscente. Por outro lado, em termos de capacidade, ambas as potências são iguais, porque assim como a potência cognitiva incorpora uma relação (como pura potência no gênero dos inteligíveis) com todas as coisas, assim também a potência afetiva o faz à sua maneira. Portanto, ambas se incluem, porque o intelecto conhece a vontade, e a vontade deseja e ama as coisas que pertencem ao intelecto. [1]

Não há dúvida ou desacordo sobre essas coisas, mas sobre a terceira comparação, que diz respeito à dignidade e excelência, certamente há. Entre os escolásticos, em geral, surgem duas sentenças: os escotistas que lutam pela vontade com o seu duque [2], o doutor Sutil, junto de Alexandre Halense, São Boaventura, Henrique de Gante, Gabriel, Áquila e outros antigos [3]; os tomistas, no outro lado da força, que estão com Sto. Tomás [4] em defesa da primazia do intelecto, com o qual os suaristas tendem a concordar. [5]

Segundo os comentários Conimbricenses ao De Anima [6], Egídio Romano e Alberto Magno também teriam patrocinado a sentença voluntarista. Em vista disso, aceitamos o caso de São Boaventura, Egídio, Biel, Halense e Áquila, mas rejeitamos que Santo Alberto tenha preservado alguma forma de voluntarismo.

As referências aludidas pelos jesuítas de Coimbra conduzem de imediato para os comentários às Sentenças [7], onde nas passagens, a primazia da vontade em ordem à moção ao ato [8] é afirmada: tal questão, não obstante, não está necessariamente relacionada ao problema da nobreza da vontade sobre o intelecto. Aqui, tristemente, as citações dos Conimbricenses soam errôneas: devemos entender a “primazia” mencionada por Alberto apenas no sentido de que a vontade (como apetite) participa mais do que a inteligência no exercício do livre-arbítrio, embora permaneça, em última instância, o primado do intelecto, que primeiro apresenta o bem particular à vontade. Nada mais do que isso.

Existe, pois, uma certa primazia do intelecto na medida em que propõe seu objeto à vontade e, além disso, uma precedência da vontade na medida em que exerce sua atividade para mover o ato. Essa primazia, já foi contemplada e admitida pelo próprio Tomás e nada tem a ver com o problema levantado posteriormente por Escoto, como os filósofos da Companhia (a quem tanto estimamos) querem fazer parecer. Para comprovar nossa opinião, basta a menção do terceiro livro dos comentários ao De Anima [9] de Santo Alberto: nele Alberto declara expressamente que a vontade leva o homem ao ato (e assim, cumpre sua atividade na inclinação do homem à operação, como ensinaria depois o seu pupilo Tomás).

Cada opinião é certamente provável, tanto extrinsecamente quanto intrinsecamente, e como aparecem nos argumentos não diferem muito uma da outra, porque Sto. Tomás e seus seguidores estão convencidos de que a vontade é comparativamente mais nobre que o intelecto, embora o intelecto a supere do ângulo absoluto em todas as coisas.

Uma vez expostas as coordenadas gerais da polêmica, podemos finalmente passar ao que nos interessa: as objeções de Gallus Manser, tomista altamente erudito, ao voluntarismo de Escoto. O fr. Manser, em sua célebre obra Das Wesen des Thomismus, ergue um muro de objeções contra a filosofia do doutor sutil: em nosso modesto artigo, porém, focaremos os esforços apenas em sua ofensiva contra o voluntarismo, que podemos ver imediatamente no capítulo II do seu livro.

O principal argumento do tomista suíço parte da precedência do verdadeiro sobre o bem, através da primazia em ordem ao exercício (quoad exercitium no jargão escolástico) do intelecto em relação à vontade. No apotegma escolástico clássico: nihil volitum nisi praecognitum (nada pode ser querido se não for antes conhecido).

Manser tira uma série de conclusões do apotegma: I) que o bem pressupõe entitivamente o objeto do intelecto, que inclui, por sua vez, a própria especificação do seu ato (quoad specificationem como diz Caetano); II) que a razão do bem reside na verdade; III) que o objeto do intelecto é mais perfeito e mais fundamental, pois está em relação ao bem como ato em vista da potência. O padre tomista reproduz com proficiência o parecer de Caetano: o intelecto effective precede a vontade effective, ou seja, a vontade só pode provocar ou produzir seus atos quando especificada e excitada para determinado fim. Ora, o objeto responsável por isso é o bem (que tem ao mesmo tempo a razão de fim e, portanto, a razão que especifica), que só pode ser apresentado pelo intelecto. Portanto, é impossível à vontade, como potência ativa indeterminada, especificar e determinar por si mesma o curso de sua operação, se seu objeto não for previamente conhecido e apresentado como tal pela inteligência: nada pode ser querido se não for conhecido de antemão.

Nesse sentido, para os tomistas em geral, o intelecto concorre com o ato voluntário enquanto o move quoad specificationem o apetite racional apresentando seu objeto; e a vontade, por seu lado, move o intelecto quoad exercitium ou como causa eficiente (!), enquanto potência ativa orientada para um fim universal, que, por isso, move todas as outras potências que se orientam para os fins particulares.

Considerando o que ensinaram Escoto e seus discípulos: para ambos a vontade é uma potência ativa indeterminada. É potência ativa porque é capaz de produzir ou provocar seus próprios atos; é indeterminada porque, ao contrário das potências naturais (que operam ex impetu naturae), não está necessariamente inclinada a nenhum bem particular e é indiferente aos atos que pode provocar (liberdade segundo o exercício ou quoad exercitium): podemos querer querer ou não querer (liberdade de contradição); querer atos contrários sobre o mesmo objeto (liberdade de contrariedade); querer e ser indiferentes a atos que não são essencialmente contrários, mas que são diferentes segundo sua razão formal (liberdade de especificação). [10]

Mas a vontade exige, pelo exercício ou elicitação de seu próprio ato, a influência do intelecto que apresenta o apetecível (bem particular)? Escoto e Áquila (e outros voluntaristas) respondem sem titubear: sim! Porém, exige como condição meramente extrínseca (que não participa, portanto, da causalidade física da vontade sobre suas ações). Por isso, Escoto, juntamente com os tomistas, admite sem hesitação o apotegma citado mais acima.

Agora, podemos responder a Manser e Caetano: para Escoto, a vontade não pode querer algo a menos que seu objeto seja apresentado pela inteligência; fato que, mesmo assim, não denota qualquer dependência intrínseca, mas sim uma condição sine qua non, e, portanto, meramente extrínseca, de uma potência livre indeterminada (a vontade) sob a atividade de uma potência natural (o intelecto). Só podemos apetecer algo que está de alguma forma presente na vontade (Escoto jamais negou isso!), mas a presença do objeto é a única coisa que a vontade precisa para elicitar os seus atos. Ou seja, contra Caetano e Santo Tomás ensinam, a vontade não é determinada em função da especificação e, em última instância, pelo objeto, pois como potência ativa ela tem toda a força para realizar sua atuação e não recebe, em troca, nada do objeto apresentado (nem mesmo sua especificação). Como causa física (formalmente indeterminada), é responsável pela entidade total do ato provocado, segundo Escoto. Não há, portanto, nenhuma moção quoad specificationem (indireta) como os tomistas desejam. A vontade coordena o objeto apresentado pela inteligência como causa principal, e finalmente provoca seu ato, não pelo mesmo objeto, mas por sua eficácia absoluta.

Em outras palavras: I) nem o intelecto nem o objeto conhecido podem ser o fator determinante no ato da volição, que pertence apenas à vontade como potência autodeterminante; II) a vontade responde integralmente pelos próprios atos, como potência formalmente distinta do intelecto; III) o ato de querer, considerado não como uma formalidade da qual brota de uma faculdade, mas como um todo do qual a alma é sua origem, compreende uma cooperação do intelecto e da vontade: da vontade como causa principal e do intelecto como causa secundária.

Com isso em mente, é fácil demolir o castelo de Manser: o argumento sacado da precedência do verdadeiro sobre o bem não se sustenta, pois para Escoto não são os objetos conhecidos e apresentados de antemão pelo intelecto que especificam a vontade (motio quoad specificationem). De fato, nenhum objeto concorre como razão especificante das potências (naturais ou não); a especificação vem, antes de tudo, pelo modo intrínseco da potência em provocar seus atos. No caso da vontade, pela formalidade que constitui sua indeterminação ativa. No caso das potências naturais, pelo seu ímpeto natural necessário.

A partir disso, Escoto negaria a consequência extraída: se a especificação aparece pelo modo intrínseco de elicitação, então a vontade é mais nobre que o intelecto: porque sua atividade afeta amplamente todas as faculdades da alma, das quais a inteligência não escapa. Assim a vontade seria mais excelente, como o ordenante sobre o ordenado; o mais alto sobre o mais baixo; a vontade como formalmente livre sobre o que é formalmente necessário (a inteligência); a vontade como um império sobre o qual nenhuma outra faculdade pode dominar, etc. Como o objeto da vontade, embora não especificante, é o bem apreendido (que com o intelecto é uma condição extrínseca de seu poder efetivo), como há uma proporção da faculdade para seu objeto, o objeto da vontade seria, em vista disso, superior ao objeto do intelecto.

Uma pedra no sapato de Escoto seria o intelectualismo “ radical” de Francisco Zumel [11], que pretende demonstrar que o objeto apreendido pelo intelecto move a vontade não apenas quoad especificationem, mas também efetivamente, como causa eficiente direta. O que demoliria a maioria dos argumentos apresentados até agora. Escoto, se vivesse na escolástica del siglo de oro, argumentaria contra Zumel que uma potência natural não pode elicitar ativamente uma potência livre sem necessitá-la e, portanto, sem destruir seu próprio modo de elicitação. Se uma potência natural movesse efetivamente a vontade, então nossos atos não seriam formalmente livres.

Zumel, por sua parte, também antecipou objeções como essa… Um encontro entre os dois seria um embate estimulante.

Ref.

[1] Tomás de Aquino, In sententiarum III, Dist. XXVII, q. I. art. IV.

[2] Vide, v. g., Escoto (In sententiarum IV, Dist. XLIX, q. IV), Mastrio (De anima, Disp. VII, q. VIII), João Ponce (Ibid., Disp. XIII, q. IX), Dupasquier (Ibid., Disp. XIV, q. III), etc.

[3] Apud Suárez (De anima, Lib. V, cap. IX), Conimbricenses (Ibid., Lib III, cap. XIII, q. II, art. I)

[4] Tomás de Aquino (In primam partem, q. LXXXII, art. III; De Veritate, q. XXII, art. XI); Herveu (Quodlib. VIII, q. IX), Paludano e Durando (In sententiarum IV, dist. XLIX), Capréolo (In Sent. I, Dist. I, q. II; Dist. III, q. III, art. II), Caetano e Domingo Bañez (In primam partem, q. LXXXII, art. III), João de S. Tomás (De anima, q. XII, art. V), Martínez de Prado (Ibid., Lib. III, q. XXXI), Complutenses (Ibid., Lib. III, q. XXI), Cosme de Lerma (Ibid., lib. 3, q. XXI).

[5] Vide Suárez (De anima, Lib. V, cap. IX), Vásquez (In p. secundae, Disp. XXI, cap. VIII), Conimbricenses (De anima, Lib. III, Cap. XIII, q. II), Molina (In primam partem, q. LXXXII, art. III), Valência (Ibid., Disp. VI, q. VI, punct. II), Cosme Alamanno (Summ. Phil., tertia secundae, q. CIX, art. I), etc.

[6] Manuel de Góis, In tres libros de Anima Aristotelis Stagiritae, Lib. III, cap. XIII, q. II, art. I.

[7] Lib. I, Dist. I, q. XIV em Santo Alberto; Lib. IV, Dist. XLIX em Egídio Romano.

[8] Também concedida por Sto. Tomás em I-IIa, q. LXXXIII, art. III da Suma Teológica.

[9] Alberto Magno, De Anima, 433b31–434a21.

[10] Ver o Scotellus, Pedro de Áquila, em Quaestiones in quatuor sententiarum libros Joan. Duns Scoti, II, Dist. XXIV, q. I & II.

[11] Francisco Zumel, De Voluntate, pp. 3–11

--

--